Compreender o discurso político, um valor em si

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Apercebi-me, através de publicações circuladas nas redes sociais, dos resultados eleitorais recentes na freguesia de Rabo de Peixe, concelho da Ribeira Grande, na ilha de São Miguel. O grande vencedor foi o Chega, que ali obteve mais de 38% dos votos. Mesmo sabendo-se que votaram apenas 1999 eleitores, com uma abstenção superior a 74% e havendo 3% de votos brancos e nulos. Portanto, em Rabo de Peixe, votaram no Chega 769 pessoas (601 na AD, 329 no PS).

Estive pela primeira vez em Rabo de Peixe talvez há 20 anos e recordo ainda os diversos cartazes de organizações internacionais que ali desenvolviam a sua atividade de cooperação ou financiavam projetos, num cenário que é habitual em África e nalguns espaços da América Latina e do Sudeste Asiático, mas que creio que seria único à época em Portugal, vinte anos depois da adesão à União Europeia. A pobreza era, de facto, evidente, densa, marcada.

Em Rabo de Peixe, 60% dos residentes têm uma escolaridade até ao 4.º ano. E um terço da população de Rabo de Peixe recebe Rendimento Social de Inserção. As transferências sociais têm vários efeitos, como é sabido. Um deles em Portugal é fazer descer a taxa de risco de pobreza dos 40% para os 16% (2023), ou seja, colocar-nos, nesse tema, entre o Luxemburgo e Malta, no contexto da União Europeia, e não, por exemplo, entre a Roménia e a Lituânia. Outro é permitirem a narrativa do Chega sobre redistribuição e subvenções sociais, epigrafando os “subsidiodependentes” como exemplos de abuso cívico e de fraqueza pessoal, o que torna a sua expressão eleitoral em Rabo de Peixe aparentemente contraditória.

Não é novidade, sabemos, que boa parte do eleitorado do Chega está nas camadas mais pobres e menos instruídas da população. Por um lado, o Chega tem um discurso público que será dos poucos que é compreendido. E seria bom medir este aspeto: quanto pesa o conteúdo de um discurso político comparativamente com o valor de a este se conseguir aceder? Por outro lado, o medo do outro, o vindictismo e o apelo patrioteiro, ao instinto familiar e à devoção religiosa convivem bem com os instintos mais naturais de quem sente a sua fragilidade e vê ameaça no futuro, na diferença, no desconhecido. A esperança é, nessa medida, ironicamente, um privilégio exclusivo dos mais ricos.

Diversos estudos sobre a realidade política recente (sobre os eleitores de Bolsonaro, de Trump, da AfD, da Liga Norte italiana, sobre a transferência do voto comunista francês para a Frente Nacional, entre outros) explicam este fenómeno. Os eleitores que votam contra os seus interesses que pareceriam mais imediatos fazem-no por não se identificarem com a posição de assistidos e dependentes, por quererem emular o que julgam ser o comportamento dos mais afortunados, por acharem que o “sistema” os excluiu e não deve ser premiado por isso, por sentirem que o meio urbano e o seu cosmopolitismo, pluralidade e linguagem os pune diariamente. O voto no Chega não é, de facto, apenas um voto de protesto. É também um voto aspiracional, de auto dignificação e, provavelmente, de simples apreço pela compreensibilidade da mensagem. Mesmo quando esta é o que é.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

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